domingo, 23 de janeiro de 2011

Somos Racistas?



O jornalista e cientista social Ali Kamel publicou o livro não somos racistas, trata-se, como subtítulo indica, “ uma reação aos que querem nos mostrar numa nação bicolor”. O livro defende a idéia que compomos uma nação predominantemente mestiça e que o racismo existe como manifestação minoritária e não institucional, sendo a pobreza o principal problema do país. Pretende criticar as reivindicações do movimento negro e os projetos de adoção de cotas raciais nas universidades publicas brasileiras. Do outro lado do debate, a vozes que defendem a tese de que o elogio da mestiçagem brasileira tem caráter ideológico, tendo a esconder o racismo existente no país e a exclusão do negro ao longo dos cinco séculos de formação do país.
Para se situar nessa discussão, seria interessante compreender o contexto dos períodos anterior a abolição. O período anterior e posterior à abolição. O processo de abolição não pode ser resumido ao 13 de maio de 1888. Por trás da data histórica, o comportamento da população negra no país mostra a existência de uma realidade muito mais complexa. Por um lado, antes mesmo da abolição, ser negro já não significa mais exatamente ser escravo. Pesquisas recentes apontam que apenas 5% do total da população negra ou parda do país era escrava às vésperas da extinção da escravidão. O Grande numero de alforrias por reconhecimento, laços pessoais e familiares, compras, entre outros fatores, mostrava que já havia muitos negros e mestiços vivendo alem disso, as fugas e formações de quilombos, muitos dos quais apoiados pela população pro-abolição, também já contribuiriam para uma relativização da identificação do negro como escravo, mas também livre ou liberto, como indicam as categorias dos censos do período.
Por outro lado, a tão famosa Lei áurea assinada pela princesa Isabel não significou a igualdade em termos de inclusão e cidadania para os negros e ex-escravos, ainda que as diferenças não fossem registradas pela legislação, pelos códigos e regulamentos institucionais de maneira geral a partir dessa data. Para muitos negros, pardos e outros, o lugar social marcado inicialmente pela escravidão não seria modificado em pouco mais de um século e algumas gerações. Na ausência de qualquer programa de integração dessa população pobre e praticamente analfabeta, boa parte desse contingente de cidadãos e seus herdeiros permaneceu excluída dos bens materiais e culturais durante muitos anos. Depois do 13 de maio, muitas famílias continuaram como mão-de-obra nas mesmas fazendas onde tinham sido escravas. Alguns indivíduos migraram para os grandes centros urbanos, em muitos casos reforçando o numero de sub empregados ou desocupados, segundo a terminologia da época, e lotando os cortiços e favelas que se formavam nas cidades. Alguns outros adquiriram consciência da sua condição e associaram-se para denunciar a situação e defender seu lugar na sociedade, como no caso da Guarda Negra, espécie de milícia que procurava proteger a liberdade dos negros e a personalidade da princesa Isabel, e da imprensa de identidade negra, que denunciava o problema e funcionava como espaço de sociabilizado para essa população. Posteriormente, já nos anos 30, a fundação da Frente Negra Brasileira (FNB), iria politizar a discussão, buscando o espaço para o negro na esfera política. Tudo isso indica que havia mais diversidade do que se acreditava na inserção do negro na sociedade brasileira do pós-abolição. Esse passado de escravidão iria marcar também o debate em torno da construção da nação e do estado brasileiro. Já em meados do século XIX, intelectuais, legisladores, cientistas, mostraram-se preocupados com o perfil e a composição da sociedade brasileira, e com projetos possíveis para a construção do país.
Muitas das construções institucionais iniciadas com D. João VI e d. Pedro I foram incrementadas no segundo reinado. D. Pedro II era monarca incentivador das artes e da ciência. Nesses governos, sobretudo após a independência, foram criados institutos de estudos e expandidas as universidades e academias, lugares onde se debatia sobre qual queria o projeto de sociedade possível e desejada no Brasil. Apesar de alguns setores, o fim da escravidão era tido como possível como inexorável.
Vários aspectos podem ser apontados como tendo contribuído para esse fim: as pressões internacionais, o fortalecimento do capitalismo industrial e a necessidade de mão-de-obra livre e consumidora, as idéias igualitárias oriundas do pensamento iluminista, a própria ação dos escravos, que manifestaram diferentes modos de resistir, por meios de fugas, dos quilombos e das revoltas durante todo o século XIX e em varias partes do mundo. Alem disso, pode-se dizer que extinguir a escravidão era uma exigência do mundo dito civilizado e corresponder a essa demanda seria fundamental para colocar o Brasil no ritmo do progresso, de acordo com os conceitos da época. As negociações entre os interesses de diferentes setores fizeram abolição ser fruto de um processo gradual. Uma lei de extinção do trafico foi assinada já em 1851 com a lei Eusébio de Queirós. Com o fim desse comercio, a grande, mudança no país foi acentuada do trafico interno. Tornou-se mais comum do que nunca a venda de escravos das fazendas do Nordeste para o Sudeste cafeeiro, acompanhando deslocamento do eixo da economia para essa região. Em 1871, foi promulgada Lei do Ventre Livre, e apesar do caráter moderado desta, os fazendeiros perceberam que não nasceriam mais escravos no Brasil. A escravidão estava com os dias contados. O problema da integração do negro na sociedade brasileira apenas começava.
Seria o Brasil um país de negros e mestiços? será que isso combinaria com a noção de país civilizado europeu que se pretendia para ex-América portuguesa? Essas eram uma das questões sobre a identidade brasileira que intelectuais, médicos e cientistas sociais se colocavam no final do século XIX e inicio do século XX. O pensamento dominante na época era fortemente influenciado pelo evolucionismo e pela teoria de seleção natural de Charles Darwin. Esse biólogo britânico, observando o comportamento das espécies animais, desenvolveu uma teoria que explica a modificação e evolução das espécies por meio de um processo de melhor adaptação ao meio, que seria sintetizada pela expressão “ A lei do mais forte”, seu trabalho teve grande influencia no pensamento moderno, sobretudo no que se refere à secularização. Exterminando a idéia de que o homem teria sido criado por Deus. Porem, para alguns outros homens da ciência daquele tempo, o evolucionismo poderia também se aplicarão comportamento humano, o que se aplicar ao comportamento humano, o que foi chamado de darwinismos social.
Segundo as mais expressivas concepções dessa corrente, não somente o negro tende a ser visto como ser inferior ao branco na escala da evolução como o mestiço apresenta em si um problema. Alguns pensadores do darwinismo social chegaram a insinuar que o mestiço seria também fértil. Daí a origem da palavra mulato, do termo mula híbrido nascido do cruzamento do cavalo com o jumento. A explicação ideologia para isso seria a tentativa de desestimular as relações inter-raciais. No contexto brasileiro, a hibridização seria inevitável. Com a historiografia demonstra, o numero de mulheres brancas vindas para o território brasileiro foi sempre inferior ao do homem, sendo a mestiçagem conseqüência disso. Seria preciso que os nossos cientistas e intelectuais pensassem em outros modelos. Dentro dessa concepção, um dos primeiros a tentar identificar, qualificar e diagnosticar o elemento afro-brasileiro foi o escritor, sociólogo e jurista Sílvio Romero, que entendia que o destino da população brasileira era torna-se branca, já que a mestiçagem o tipo racial mais numeroso tende a prevalecer. Romero acreditava que o branco seria favorecido pelo fim do trafico e pelo aumento da imigração de trabalhadores europeus.
Outro brasileiro que se dedicou á questão nesse contexto, o medico e antropólogo Raimundo Nina Rodrigues, discordou da tese de Romero. para ele, não seria possível estabelecer no Brasil um a civilização a partir da mistura entre o branco, o negro e o índio. Estes últimos eram tipos inferiores e não poderiam contribuir para tal ideal civilizador. Nina Rodrigues acreditava que a mistura entre raças diferentes criaria indivíduos fracos, que não se identificariam co o modo de viver de nenhuma das raças, gerando um tipo inferior. Acreditava que o Estado deveria mais adaptada “superiores” e “inferiores”. Essa propostas não foram utilizadas pela República, na Constituição de 1891e no Código Civil e Penal da época, que não faziam mais distinção entre negros, brancos e pardos. Todos eram cidadãos. O problema seria a pobreza,a vadiagem, a mendicância e a capoeiragem, contravenções punidas pelo Código Penal de 1890. Para o direito brasileiro, não era população desocupada, sem dinheiro e sem lar. Os indivíduos nesse estado, muitos dos quais negros ex-escravos ou descendentes de escravos, poderiam ser enviados a diversas instituições, como as colônias correcionais ou mesmo ao Exercito ou a marinha. Não pensamento darwinista social que vigoro uma concepção dessa legislação, mas com certeza estavam presentes as idéias de ordem e em grande parte a mentalidade higienista. Observava-se, alem disso, que o estimulo dado pelo governo brasileiro à imigração de trabalhadores europeus no fim do século XIX e inicio do século XIX foi em grande parte justificado pela ideologia de branqueamento da população.
Nos anos 30, enquanto as idéias eugenistas voltavam à moda na Europa, sobretudo a partir da experiência do nazismo alemão, no Brasil tendia-se para uma nova compreensão da sociedade para uma abordagem culturalista. Já havia uma corrente de valorização do mestiço como representante da identidade brasileira desde a década de 1870, porem seria com o sociólogo Gilberto Freyre que esse modo de pensar ganharia maior expressão. Em seu clássico Casa -grande e senzala ele compõe uma historia cultural e social do Nordeste agrário e escravista durante o inicio do período colonial, que corresponde à fase de predomínio da economia açucareira. Nesse contexto, o menor numero de mulheres e o caráter conciliador do colonizador português favoreceram o desenvolvimento da mestiçagem no país, diminuindo a distancia entre a casa-grande e a senzala. O mulato seria elemento de conciliação entre os extremos existentes. Alem disso. Gilberto Freyre aposta na mestiçagem como principal traço da identidade brasileira, fazendo uma leitura positiva da hibridização. Estão lançadas as bases para ideologia da democracia racial, posteriormente apontados a um mito pela releitura de Gilbeto Freyre.
Esse pensamento parece ter sido bem aceito pelo Estado e pela população brasileira. Ao mesmo tempo que a idéia de democracia racial foi incorporada pelo censo comum e colaborou para a construção da própria identidade nacional, o Estado e as instituições receberam com boa vontade essa teoria. A crença numa contribuição igualitariamente do índio, do negro e do branco participa do mito fundador do Brasil. Alem disso, essa igualdade também favorece o estabelecimento do Estado brasileiro que sempre se desejou: sob a impressão de que há igualdade entre as cores um código comum, evitando-se conflitos e embates. Dessa forma, o Brasil se parece mais com aquilo que gostaria que fosse, já sabendo como ele é.

Organizador: Ayrlan Braga Ferreira

ALMEIDA, Sílvia Capanema P. de. Revista Historia Viva. São Paulo. Ed. Duetto, n.37, p.76, 2006.